Emil Cioran — Um Apátrida Metafísico I
Traduzo aqui alguns trechos da maravilhosa coletânea de entrevistas do romeno Emil Cioran reunidas no volume “Un Apolide Metafisico”:
Deus
Quando tudo vai de mal a pior, quando tudo desaparece, é preciso ainda dialogar com alguém, não se pode certamente falar consigo mesmo durante toda a noite. E o pensamento de Deus vem automaticamente. Aliás, veja bem, há vinte e cinco anos, tive uma crise religiosa. Uma crise religiosa sem fé. Mas por um inteiro ano não fiz outra coisa senão ler vidas de santos. Devorei tudo, sobretudo as santas (risos). Eu parecia um maníaco, lia somente aquilo. Aquilo e Shakespeare.
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[…] me vem à mente um outro caso, de um sujeito que tinha sido muito rico em um país do leste europeu. Tinha perdido tudo e vivia em um sótão. Uma vez ele me disse uma coisa estupenda: “o regime comunista me tirou tudo, ma lhe sou grato, porque perdendo tudo, encontrei Deus”. Vê por que o fracasso é indispensável ao progresso espiritual? É uma experiência filosófica capital e fecunda.
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Estás em plena noite, tudo vai mal, mas eis que surge aquele Deus tal qual não é, tem-se a impressão de uma presença misteriosa. E então, às vezes, pode-se conhecer mesmo o êxtase, e é esta a razão por que amo Dostoiévski. Ele descreveu o êxtase sem fé. Kirilov, o epiléptico, todos os epilépticos de Dostoiévski conhecem o êxtase sem a fé. E sem ser epiléptico também eu conheci aqueles êxtases, que te fazem compreender os êxtases propriamente religiosos. Você não vai acreditar, mas reli cinco vezes O Livro da Vida de Teresa D’Ávila.
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Já ouviu falar de Edith Stein? Era uma judia alemã que se converteu ao cristianismo do seguinte modo (e depois morreu em Auschwitz). Ela havia ido encontrar uma sua amiga filósofa (também ela era filósofa notável) e, precisando esperar cerca de uma hora, teve a ocasião de ver um livro, a vida de Teresa d’Ávila; começou a lê-lo, e ela mesma diz que esta foi a origem mesma de sua conversão. Tornou-se freira, e foi em um convento holandês que os alemães a capturaram.
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O fato é que temos um medo tremendo de sofrer. Mas há sentido, então, em querer extirpar a dor? Dado que também os seres primitivos a sofreram, a dor é uma constante. Antes não haviam medicamentos, mas hoje inventaram uma quantidade de meios para evitar o sofrimento. Veja bem que o cristianismo, por exemplo, perderia qualquer consistência se se suprimisse a idéia do sofrimento e da dor. Hoje, a ilusão dessa dimensão metafísica caracteriza o homem civilizado. No que me toca, não sou um crente, mas a religião me interessa. E a coisa paradoxal é que muitos crentes, por sua vez, não tem o mínimo interesse pela religião e por aquilo que ela implica. Porque se o mal e o pecado original — que estão ligados ao sofrimento — fossem suprimidos, o cristianismo não teria mais nenhum sentido.
Romênia
Os romenos, em geral, são céticos, não esperam grande coisa do destino.
Aquilo que amei primeiramente na Romênia foi o seu lado extremamente primitivo. Não faltavam, certamente, pessoas civilizadas, mas eu preferia os iletrados, os analfabetos…
O povo romeno é, curiosamente, o povo mais fatalista do mundo.
Após uma existência durante a qual conheci muitos países e li muitos livros, cheguei à conclusão de que era o camponês romeno a ter razão. Aquele camponês que não crê em nada e pensa que o homem está perdido, aquele camponês que se sente expulso da história. Essa ideologia de vítima é também a minha concepção atual, a minha filosofia da história. Em substância, toda a minha formação intelectual não me serviu a nada.
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Nasci em uma vila dos Cárpatos, na Romênia. Quando era pequeno, passava todo o tempo ao ar livre, nas montanhas, de manhã até a noite, como um animal selvagem. Quando fiz dez anos, meus pais me levaram para a cidade. Lembro-me ainda daquela viagem, que fiz em uma carroça puxada por cavalos; eu estava completamente desesperado. Erradicaram-me, e durante o trajeto, que durou uma hora e meia, tive o pressentimento de uma perda irreparável.
Niilismo
Escrevi para injuriar a vida e para injuriar a mim mesmo. O resultado? Consegui suportar melhor a vida e a mim mesmo.
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Acabo de receber uma carta de um amigo que conheço há tempos, na qual ele diz que não acredita em uma palavra de tudo o que escrevi, “porque te conheço bem, e sei que és um tipo muito jovial”, o que demonstra o quanto se possa errar. Qualquer que seja o meu estado de ânimo, sempre consegui escondê-lo atrás de um comportamento histriônico. Eu sou escravo de meus nervos, mas posso dissimulá-lo, e o faço — comédia que me permite, por exemplo, sair para jantar num estado de absoluto desespero e contar histórias frívolas por todo o tempo.
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Toda iniciativa humana obtém o contrário daquilo que fora prefigurado. Toda a história tem um sentido irônico. E chegará o momento em que o homem perceberá que realizou exatamente o oposto daquilo que desejava. De um modo mais que evidente.
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Conheci [aquele homem] no fim da guerra. Quando falava com ele, às vezes me sentia um ingênuo. E este homem, aos sessenta anos, casou-se com uma moça e teve um filho. Então eu lhe disse: “mas, em suma, você não tem ilusões com relação a nada, como pôde fazer uma coisa símile?”. E ele: “E, contudo, aconteceu, apaixonei-me por aquela mulher…”. Creio que a coisa realmente bela da vida seja ter perdido as ilusões e ainda assim ser capaz de um ato de vida, ser cúmplice de uma coisa assim. Estar em total contradição com aquilo que se sabe. E se a vida tem algo de misterioso é justamente por isto, que ainda sabendo aquilo que se sabe, um homem é capaz de realizar um ato que vai contra o próprio saber. E devo dizer que aquele homem era deveras uma pessoa muito séria. Houve um período em que nos víamos muito frequentemente, mas depois nos perdemos de vista, a última vez que nos encontramos foi há sete anos, porque ele, sendo um judeu alemão, havia voltado à Alemanha. E cause-me uma grande impressão receber uma carta de seu filho que, no dia mesmo da morte do pai me escreveu: “Antes de morrer meu pai pensou no senhor, e pediu-me que lhe escrevesse duas linhas,” — conto isto por vaidade — “seus livros acompanharam-no em todos estes últimos anos”. Quando se recebe uma carta dessas, chega-se a pensar que no fundo valha a pena escrever, sentimo-nos justificados, se preferir. Por que aquele homem que tinha superado tudo, que não acreditava absolutamente em nada, que pôde ainda apaixonar-se e cometer aquele ato imprudente que é o matrimônio e ter um filho… esta contradição entre o próprio saber e as próprias ações doa à vida uma dimensão misteriosa e, em certo sentido, a redime. Não creio que valha a pena lançar-se em grandes teorias metafísicas sobre o que seja o mistério, etc, este é o mistério: que se possa fazer algo que está em contradição com tudo aquilo que se sabe.
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Creio que a idéia mais simples, a mais direta, mas a mais difícil, seja aquela de viver com as próprias contradições. É preciso aceitá-las.
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Acredito que se um governo suprimisse a televisão, os homens se matariam uns aos outros pelas ruas, porque o silêncio os aterrorizaria.
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Não creio nem em Deus nem em nada. Mas tive uma crise religiosa, por exemplo, aos vinte e seis anos, por todo um ano não fiz nada além de ler místicos e vidas de santos. No fim, compreendi que eu não fora feito para crer, me dei conta disso através de uma grande crise de desespero. Não lia nada além de Shakespeare (vivia em uma cidade de província na Romênia) e textos de religião. Escrevi um livro de comentários a tais textos que eram ao mesmo tempo pró e contra a religião.
Filosofia
Geralmente, sempre nutri o maior interesse pela filosofia-confissão.
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Quem “inventa” a palavra, às vezes “revela” a realidade, mas, na minha opinião, esta não é a estrada justa.; pode ser extremamente perigosa. Eis porque creio que em filosofia não seja necessário continuar a inventar palavras novas, termos técnicos. Nietzsche não criou palavras, mas nem por isso sua obra tem menos valor. Antes: a tecnicização é o grande perigo da filosofia universitária, é aquilo que a afasta das coisas.
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Os filósofos escrevem para os professores; os pensadores, para os escritores.
Utopia
O otimismo utopista é francamente impiedoso. Recordo, por exemplo, um encontro com Teilhard de Chardin: falava com entusiasmo sobre a evolução do cosmo até Cristo, o ponto Ômega, etc. Então lhe perguntei o que ele pensava sobre a dor humana. “A dor e o sofrimento”, disse-me ele, “são um simples acidente da evolução”. Fui embora indignado, recusando-me a discutir com aquele deficiente mental.
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A história é o antídoto da utopia.
Poder
O poder é diabólico: o diabo não era outra coisa que um anjo com ambições de poder. Desejar o poder é a grande maldição da humanidade.
Cigarro
[quando parei de fumar] A vida não tinha mais nenhum sentido, tudo aquilo que eu amava na vida estava ligado ao cigarro: uma paisagem, qualquer coisa, o cigarro dava sentido a tudo. E não era mais possível. Cinco anos de luta, de agonia… Não podia mais escrever suprimindo o café, todos os excitantes. “Renuncio a escrever”, disse a mim mesmo. Foi o único combate real que conduzi em minha vida.
Língua
Entrevistador: O senhor abandonou não só sua pátria, mas também, e isto é mais importante, a sua língua.
Cioran: É o pior infortúnio que pode acontecer a um escritor, o mais dramático. Em relação a ele as catástrofes históricas não são nada. Escrevi em romeno até 1947. Naquele ano, eu estava em uma casinha perto de Dieppe e traduzia Mallarmé em romeno. De repente, disse a mim mesmo: “Que absurdo! De que adianta traduzir Mallarmé em uma língua que ninguém conhece?”. E foi naquele momento que renunciei à minha língua. Comecei a escrever em francês, o que foi muito difícil, porque a língua francesa não se adéqua à minha índole: eu preciso de uma língua selvagem, de uma língua de bêbados. O francês foi para mim como uma camisa de força. Escrever em uma outra língua é uma experiência terrível. Reflete-se sobre as palavras, sobre o estilo. Quando escrevia em romeno, fazia-o sem perceber, escrevia e basta. Naquele tempo as palavras não eram independentes de mim. Quando comecei a escrever em francês, todas as palavras se me impuseram à consciência; eu as tinha diante de mim, fora de mim, em suas caixinhas, e ia apanhá-las: “agora tu, e então tu”.
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Em todas as línguas se escreve como se quer, exceto em francês.
Tédio
Posso dizer que a minha vida foi dominada pela experiência do tédio. Um sentimento que conheço desde a infância. Não é o tédio que se possa combater com as distrações, as conversas ou os prazeres, é um tédio que se poderia definir como fundamental; e que consiste nisto: mais ou menos bruscamente, na própria casa ou na casa dos outros, ou diante de uma belíssima paisagem, tudo se esvazia de conteúdo ou de sentido. O vazio está em nós e fora de nós. O inteiro universo é anulado.
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Hoje em dia, o tédio é muito mal visto; de alguém que se entedia, dizem que é ocioso, o que não é assim tão seguro, porque aquele vácuo contém em si uma explicação do mundo. É por isto que me interessei tanto pelo tédio monástico, a accedia, ao fato de que a vida monástica é cercada pela tentação, pelo perigo do tédio. Os monges egípcios são sempre descritos como estando à janela, esperando não se sabe o quê. O tédio é a grande ameaça espiritual, uma espécie de tentação diabólica.
Escrita
Quando escreves, estás só contigo mesmo, ou com Deus, mesmo que sejas descrente.
História
A história é a negação da moral. Aprofundando-nos na história, refletindo sobre ela, é literalmente impossível não sermos pessimistas. Um historiador otimista é uma contradição em termos. Não consigo realmente concebê-lo. Eu descobri a história como disciplina teórica já bastante tarde, na juventude eu era demasiado orgulhoso para ler os historiadores. Lia apenas os filósofos, que logo depois abandonei para ler os poetas. E perto dos quarenta descobri a história, que ignorava. Pois bem, fiquei horrorizado. É a maior lição de cinismo que se possa conceber. Pegue qualquer época da história, estude-a um pouco a fundo, e as conclusões que tirará serão necessariamente terríveis.
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Por que a Europa ocidental se debateu por séculos no intento de dar vida a uma civilização que agora está claramente ameaçada do interior de si mesma, dado que os europeus estão minados por dentro? A coisa grave não é qualquer perigo externo, mas sim o fato de que todos europeus estão já maduros para desaparecer. Toda a história universal é assim: cada civilização, em um dado momento, está madura para desaparecer.
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Na história, são fascinantes apenas os períodos de declínio, porque só nestes se colocam verdadeiramente os problemas da existência em geral e da história enquanto tal. Tudo se eleva ao trágico, e cada acontecimento assume de repente uma dimensão nova.
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Na realidade, a história universal não passa de uma repetição de catástrofes, à espera da catástrofe definitiva, e desse ponto de vista a visão cristã da história se revela muito interessante, porque Satanás desempenha o papel de senhor do mundo, e Cristo aquele de alguém que não terá nenhuma influência antes do Juízo Universal. Cristo será onipotente, mas somente no final. Esta é uma idéia profunda, uma visão da história que hoje é bastante aceitável.
Literatura
Devo dizer que considero Os Demônios o maior livro do século XIX. Até mesmo o maior romance em absoluto. E Dostoiévski o maior escritor de todos os tempos, o mais profundo.
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Dostoiévski chegou ao limite da razão, à vertigem última. Com o salto no divino, no êxtase, chegou até o colapso. Para mim é o maior escritor, o mais profundo, aquele que compreendeu praticamente tudo, em todos os campos, até mesmo na política.
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Durante a minha juventude, li Unamuno — algo sobre a conquista — , Ortega, e naturalmente Santa Teresa. Atrai-me esse aspecto não europeu da Espanha, aquele tipo de melancolia permanente, de nostalgia inelutável.
Insônia
[A insônia] é uma coisa que te abre os olhos. Uma experiência extremamente dolorosa, uma catástrofe. Que, contudo, te faz perceber coisas que os outros não podem compreender: a insônia te arranca do mundo dos vivos, da humanidade. Estás excluído. Um homem vai dormir às oito da noite, nove ou dez, e no dia seguinte se levanta às oito e inicia seu dia. O que é a insônia? É que, às oito da manhã, estás exatamente no mesmo ponto em que estavas às oito da noite anterior! Não há nenhum progresso. Há apenas uma noite exterminada. Enquanto a vida é possível somente graças à descontinuidade.
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Que sentido tem o passar do tempo? Tu etás ali, todos roncam, o universo ronca, e somente tu estás acordado. Bem, não quero colocar as coisas de modo trágico, mas você saberá que noventa e nove por cento dos suicídios podem ser atribuídos à insônia. Não cito as estatísticas, elas não contam. Eu sei. É culpa da insônia. Um insone se suicida, mas quem não conhece a insônia não se suicida.
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A insônia é deveras o momento em que está totalmente sozinho no universo. Totalmente.
Pecado
Não sou um crente, mas sou obrigado a admitir a existência do pecado original como idéia (…). A história do homem começou com uma queda.
Europa
Adoro a Itália. Cheguei a ir até a Sicília. Compreendo um pouco o idioma italiano; quando estou na Itália e digo uma palavra romena ou francês, posso sempre falar com as pessoas. Os franceses são inteligentes, mas os italianos são mais rápidos, compreendem de súbito aquilo que se quer dizer, mesmo o povo. Isso me impressionou. Ademais, descobri que existe uma espécie de melancolia italiana, creio que o italiano não seja um homem feliz no sentido comum em que entende; ele tem o sentimento desse jogo universal, muito mais que o francês. Não é um povo trágico, trágico não é a palavra certa: possui o senso da irrealidade, do jogo… Depois há o sorriso, mesmo quando se faz uma besteira, há um sorriso e esta é uma forma de sabedoria. O italiano é uma língua poética, não é verdade? Prefiro a prosa francesa àquela italiana, pois a prosa francesa tem um rigor extraordinário, mas o francês não é uma língua poética, de fato. O italiano sim, é impressionante. Dante em francês não é possível, não passaria.
Gnose
Interessei-me pela Gnosi (…), o resultado foi um livrinho, o funesto demiurgo, cujo título alemão eu adoro, Die verfehlte Schopjung [A Criação que não foi]. O Criador, nós o podemos imaginar apenas malvado ou, no melhor dos casos, um trapalhão. Este juízo, após o eclipse de alguns séculos, está voltando atualmente ao auge. Mas não sou tão privado de senso de humor ao ponto de erigir-me como teólogo.